sexta-feira, 30 de março de 2007

Fé e cultura

«A fé cristã é marcada pelo realismo da encarnação. Em Nosso Senhor Jesus Cristo toda a nossa relação com Deus se humanizou, penetrando no mais fundo da nossa realidade humana. A solidez humana da fé passa pelo seu enraizamento na cultura. O crente é chamado a assumir a sua fé como expressão cultural. Não pode haver ruptura entre a fé que se professa e a cultura que inspira os valores éticos da existência. E quando houver conflito entre os valores que a fé inspira e a cultura ambiente, na vida do cristão devem permanecer as perspectivas da fé no exercício e orientação da liberdade.

A fé transforma-se em cultura através daqueles dinamismos que já referi: o pensamento, a contemplação da beleza, a acção motivada pelos mandamentos do Senhor. O crente deve habituar-se a pensar a fé, ao mesmo tempo que pensa a sua existência. A cultura cristã é suporte importante da própria fé. Todos os conteúdos da fé podem ser objecto do nosso pensamento: a relação com Deus, o sentido da fraternidade construído sobre o amor dos irmãos, o ideal da verdade, da justiça e da paz, a fidelidade como exigência nobre da vida vivida em relação, a esperança na vida eterna. O mistério da Cruz de Cristo abre-nos para a compreensão do sofrimento e da sua dimensão redentora. A morte e a vida, a alegria e a dor, abraçam-se na busca do sentido da vida cuja fonte é a "sabedoria da Cruz".

Deus e o Seu Filho Jesus Cristo atraem a nossa inteligência enquanto suprema verdade; mas cativam o nosso coração como suma beleza. Exprimir a fé como beleza foi, ao longo de dois mil anos, o mais sólido enraizamento cultural da fé. Épocas houve em que se procurou, de forma sistemática, a harmonia entre a inteligência e a beleza. O património cultural do cristianismo não é constituído apenas pelo pensamento cristão; é-o também pelo vasto património artístico em que os crentes exprimiram a fé através da beleza. A beleza deveria fazer sempre parte da cultura cristã. Uma racionalidade sem abertura à beleza é truncada e não exprime a totalidade do mistério do homem e da sua busca da plenitude. Tempos houve em que a catequese era feita através da arte; oxalá, na catequese actual, a beleza fosse, pelo menos, uma linguagem sempre presente. O cultivo da beleza caiu num naturalismo horizontal, perdendo a sua capacidade de ser raio de luz a penetrar no mistério. E a beleza sem transcendência é menos bela.

Finalmente, a fé torna-se cultura, pela acção dos cristãos, quando as suas atitudes são inspiradas nos preceitos evangélicos. Cumprir os mandamentos é a afirmação convincente da verdade que se acredita. O contrário soa a falso. Pela pena do Apóstolo João, esse é já o critério de autenticidade da Igreja primitiva: "É nisso que sabemos que O conhecemos: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz, eu conheço-O e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não está n’Ele" (1Jo. 2,3-4).

Actualmente a fragilidade da fé de muitos cristãos exprime-se no divórcio entre aquilo que dizem acreditar e a maneira como vivem. Confessam a fé em Cristo e vivem segundo o espírito do mundo. O que inspira os seus comportamentos é a cultura profana e não a Palavra de Deus. E, no entanto, só a coerência corajosa dos comportamentos influencia e marca presença na cultura vigente. "Não é aquele que diz Senhor, Senhor, que entra no Reino de Deus, mas aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática" (Mt. 7,21). A perspectiva de uma cultura cristã exprime-se na coerência das atitudes: no louvor de Deus, no amor dos irmãos e no respeito pela vida, na honradez e no amor à verdade, na justiça e na busca da paz. É por isso que os santos são clareiras de luz na construção de uma cultura cristã.»

D. José Policarpo, Catequese do 5.º Domingo da Quaresma - "A fé transforma-se em cultura", n.º 3.

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